Nas escolas sem notas e sem provas, quais alunos se dão bem? Entenda impacto de teste na Dinamarca
O g1 conversou com Noemi Katznelson, referência mundial em educação e uma das pesquisadoras à frente do estudo da Universidade de Aalborg. ‘Entre os jovens de baixo desempenho acadêmico, o estresse não desaparece, só muda de foco’, diz. Imagine estar no ensino médio e não encarar mais nenhuma semana de provas. O fim oficial da temporada de simulados. A abolição completa do frio na barriga antes da entrega dos boletins. A extinção dos terríveis pesadelos antes dos testes de física e de química. O adeus ao medo de mostrar uma nota vermelha para os pais.
Com o objetivo de aliviar o estresse e a ansiedade dos jovens, colégios da Dinamarca cancelaram totalmente ou reduziram de forma significativa as provas aplicadas para alunos de 15 a 17 anos.
✖️Você acha que quem tinha dificuldade e ia mal na escola entrou em festa? Sim? Resposta errada. Os estudantes com baixo desempenho acadêmico foram justamente os mais prejudicados nessa “inovação”, mostra um estudo do Centro Dinamarquês de Pesquisa sobre a Juventude (CeFU), da Universidade de Aalborg.
O g1 conversou com uma das pesquisadoras dinamarquesas responsáveis pela pesquisa: Noemi Katznelson, referência mundial em educação. Ela explicou que não é possível classificar o fim das provas como algo totalmente positivo ou totalmente negativo — o resultado depende muitíssimo do que a escola coloca no lugar das avaliações tradicionais.
“Quando [o sistema] funciona bem, ele reduz o estresse e aumenta o envolvimento dos alunos com o próprio aprendizado. Eles passam a entender melhor seus interesses, colaboram mais entre si — porque há menos competição — e se tornam mais conscientes do que os estimula”, diz.
“Mas a retirada da nota pode ser muito desmotivadora para jovens que já têm dificuldades. O estresse deles não desaparece, só muda de foco. Em vez de se preocuparem com a nota, eles se preocupam por não saberem onde estão. Perdem a referência e ficam desnorteados.”
Mais abaixo, nesta reportagem, leia sobre as consequências positivas e negativas observadas pelos pesquisadores.
O desafio central, explica Noemi, é implementar um esquema sólido de “feedbacks” ao longo de todo o ano letivo, para que os alunos saibam em que conteúdos avançaram e em quais precisam melhorar.
“Você não obtém automaticamente melhores resultados de aprendizagem e bem-estar apenas eliminando provas e notas. É preciso pensar em como promover a motivação, o aprendizado e a redução da pressão”, afirma.
👩🏫Que tipos de escolas implementaram as mudanças na Dinamarca?
Escolas independentes (friskoler): particulares e parcialmente financiadas pelo governo, elas têm mais liberdade para escolher o currículo e os métodos de ensino. Podem seguir linhas pedagógicas como a cristã, a Waldorf e a montessoriana.
Internatos (efterskoler): também subsidiados pelo estado, esses locais servem de moradia para os alunos durante o ano letivo. Os jovens aprendem os conteúdos com foco em autonomia, convivência e desenvolvimento pessoal.
Quais as consequências negativas observadas nos colégios sem notas?
Frederiksberg Palace, em Copenhague, na Dinamarca. País tem escolas livres que testam modelo sem provas ou notas
Diego Petroncari/Pexels
O estudo levanta pontos de atenção observados nas escolas dinamarquesas:
Sensação de “estar perdido”:
Uma desvantagem frequente, já citada no início da reportagem, é a incerteza sentida por uma parcela significativa de jovens (especialmente aqueles que têm baixo desempenho acadêmico). Sem notas, eles ficam desorientados e não sabem se estão atingindo o padrão mínimo esperado pelo colégio.
“Os alunos mais seguros lidam melhor com isso, mas os que têm menos confiança podem se desmotivar. A nota funciona como uma bússola. Se você tira a bússola e não coloca nada no lugar, muitos ficam perdidos. Os que já são engajados continuam se esforçando, mas os outros podem simplesmente parar”, diz ao g1 a pesquisadora Katznelson.
Perda da motivação:
Embora, para alguns estudantes, a ausência de provas alivie o estresse e aumente a vontade de aprender, ao menos 25% dos dinamarqueses observados no estudo deixaram de enxergar um propósito em estudar. Eles pensam: “não vale nota mesmo, para que vou gastar meu tempo?”. Para essa parcela, fica mais difícil ter autodisciplina e se sentir motivado.
Sobrecarga de trabalho para os professores:
As escolas que substituem as provas por esquemas de feedback contínuos acabam exigindo mais dos professores. Eles têm de receber a formação adequada para avaliar da forma “não tradicional”.
O g1 contou à pesquisadora dinamarquesa sobre um obstáculo na realidade brasileira: por causa da baixa remuneração e da desvalorização da carreira, muitos docentes trabalham em mais de uma escola. Com centenas de alunos, como seria possível que eles dessem “feedbacks” personalizados para cada jovem?
Katznelson reconhece que, de fato, nosso contexto é mais desafiador. Uma alternativa, segundo ela, é pensar em dinâmicas complementares, nas quais os próprios alunos avaliam seus colegas em momentos específicos.
“Claro que é mais difícil, mas não impossível. O conteúdo do ‘feedback’ precisa ser pensado — não pode ser superficial. E se o professor não conhece o aluno, é possível criar espaços para os próprios alunos darem feedback entre si”, diz.
“Pode ser algo desconfortável no começo, mas, se a escola cria um ambiente onde isso é normalizado, funciona. Pode-se, por exemplo, organizar rodas de feedback após apresentações, em que cada aluno dá um elogio e uma sugestão ao outro.”
Dificuldade de lidar com feedbacks:
Nem todos os jovens conseguem entender e decodificar o retorno que recebem dos professores. E é comum que os docentes mudem o foco da “avaliação” para algo mais subjetivo e “psicologizado”, sem focar no aprendizado dos conteúdos escolares.
Qual é o caminho mais indicado, então?
Cabe aqui uma observação: a entrada dos estudantes dinamarqueses na universidade não é associada a algo equivalente ao nosso vestibular. As instituições de ensino, em geral, selecionam os aprovados com base no histórico escolar completo deles. Isso alivia a pressão que as escolas sentem em preparar o jovem para uma prova específica e determinante.
A pesquisadora Katznelson critica o modelo escolar 100% sustentado na pressão por notas altas.
Com mais “tranquilidade escolar”, é possível abrir espaço para outras formas de ensino, além de estimular a curiosidade dos jovens e o desejo de aprender conteúdos novos.
“A educação sempre será desafiadora e, em algum grau, estressante. Mas, quando a pressão é excessiva, ela começa a prejudicar o aprendizado, a gerar desmotivação e a levar a um aprendizado mecânico. Além disso, afasta os alunos da escola, especialmente os mais pobres, que abandonam os estudos porque sentem que não têm sucesso”, diz.
O caminho, no entanto, não é simples: tirar totalmente as provas ou diminuir de forma significativa a frequência delas exige cuidado, como demonstrou o estudo dinamarquês.
Para evitar as consequências negativas observadas pelos pesquisadores, eles recomendam as seguintes práticas:
Sem exigir notas, é preciso criar outras formas de instigar os alunos. O estudo menciona 5 tipos de motivação:
Pelo conhecimento: O conteúdo é visto como algo novo, relevante e útil. Todos se sentem animados quando percebem que aqueles ensinamentos podem ser conectados com “a vida real”.
Pelo domínio: Os estudantes constroem, aos poucos, a capacidade de confiar em si mesmos. Isso é obtido após sentirem que podem explorar, tentar, errar e recalcular o percurso.
Pela autodeterminação: Os jovens devem sentir que têm liberdade para tomar suas próprias decisões e para eleger os conteúdos que mais lhe interessam. A flexibilidade da escola vai dando, aos poucos, mais confiança para os alunos tomarem decisões.
Pelas relações: Os trabalhos devem ser colaborativos, para que a interação social seja estabelecida com confiança entre todos.
Pelo desempenho: O desejo de “ir bem” não pode desaparecer. Sem provas, ele surge em apresentações de trabalhos e em jogos, por exemplo. “Nestas escolas, o desempenho está muitas vezes mais integrado em contextos sociais e relacionais, com menos pressão individual do que com notas”, afirma o estudo.
Os feedbacks têm de ser pensados com cautela.
➡️Não adiantará nada apenas dar um retorno para os alunos depois do fim de um ciclo. O processo deve ser contínuo.
➡️Os comentários não podem ser superficiais, como “muito bem!” ou “precisa melhorar”. O aluno necessita de detalhes para entender se está cumprindo os objetivos esperados pela escola. Precisa se empenhar mais em matemática ou em geografia? Respostas mais concretas diminuem o risco de os jovens ficarem desorientados.
➡️É preciso ter cuidado com o tom usado nos feedbacks. Quando um aluno ou um professor avalia outra pessoa, é comum que sinta medo de magoar quem está sendo criticado. Isso pode levar a avaliações excessivamente positivas ou falsas.
E mais: para manter um bom ambiente, há o risco de os docentes abrirem mão da “integridade acadêmica” para que ninguém se frustre. Novamente, isso tende a prejudicar os de baixo desempenho, que ficam desnorteados sem uma referência do que devem fazer.
“Se a escola tem um propósito claro e se os professores estão alinhados, é possível fazer um ótimo trabalho mesmo. Mas não é algo automático. Isso exige direção, intencionalidade e clareza sobre os objetivos da educação”, afirma a pesquisadora.
“A nota mostra só um propósito: o de obter um bom resultado. Mas o colégio também serve para preparar os alunos para a vida, a partir da leitura, da matemática e do conhecimento de mundo.”